(A santidade no matrimônio ao longo dos séculos)
NOSSA SENHORA E SÃO JOSÉ
Em uma série dedicada aos santos e beatos que viveram o matrimônio, não podemos deixar de mencionar o mais consagrado casal entre os casais; pelo contrário, o caráter, sentido e propósito singulares que sua vida conjugal adquire no plano divino da salvação merecem ser colocados em primeiro lugar.
Entre as opiniões correntes acerca do matrimônio de Maria e José, algumas das quais se consideram católicas, é possível encontras duas vertentes opostas. Existem os que têm fortes ressalvas em admitir que havia um matrimônio real, verdadeiro, incontestável e indissolúvel entre Maria e José. Outros, não raro, sustentam - às custas da perpétua virgindade de Maria, um dogma já atestado pelas mais antigas profissões de fé - que São José usufruiu de sua união com a Virgem inclusive em relação ao sexo, e que o seu "primogênito", o Filho de Deus encarnado, Jesus Cristo, foi concebido e nasceu de maneira totalmente natural, e que, além disso, depois vieram outros filhos e filhas, resultado das relações sexuais a que teriam dado prosseguimento - os "irmãos e irmãs de Jesus" mencionados nas Sagradas Escrituras.
Em primeiro lugar, é impossível negar a verdade de que entre Maria e José houve de fato um matrimônio, não só metafórica ou figurativamente, mas em seu sentido completo e verdadeiro. O noivado de ambos foi concluído em seu casamento, quando São José levou Maria à sua casa, seguindo a instrução do anjo: "José, filho de Davi, não temas receber em tau casa Maria, tua esposa" (Mt 1,20).
De fato, não há dúvida sobre a existência de um verdadeiro matrimônio entre Maria e José: José não se comprometeu com Maria no sentido de ser meramente seu "noivo", no sentido atual da palavra, mas foi, sim, no sentido completo e legítimo do termo, seu marido e esposo, da mesma maneira que Maria foi também mulher e esposa de José. As Sagradas Escrituras utilizam o título correspondente, quando em Mateus 1,16, por exemplo, diz-se: "E Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado o Cristo". Em Lucas 2,4-5, no registro da jornada do casal santo a Belém para o recenseamento, diz-se: "E José foi também da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, para se recensear juntamente com Maria, sua esposa (desponsata sibi, segundo a tradução da Vulgata), que estava grávida".
Além disso há o fato claramente atestado nos Evangelhos de que Maria e José realmente viveram juntos, dividiram um lar, e eram considerados entre seus parentes e conhecidos como vivendo uma relação conjugal. Como os israelitas daquela época possuíam conceitos rigorosos de moralidade e decência na vida conjugal e familiar, adultos que não fossem do mesmo sexo ou que não fizessem parte da mesma família não podiam viver sob o mesmo teto, e menos que fossem unidos em matrimônio como marido e mulher.
Nas escrituras consta explicitamente que São José recebeu Maria em sua casa, que cumpriu seus deveres de esposo com fé e responsabilidade, e que Maria, reciprocamente, cumpriu seus deveres de esposa para com José. Eles fizeram juntos o caminho até Jerusalém, para as festas religiosas, foram juntos ao Egito, fugindo da perseguição de Herodes e, por fim, viveram juntos em Nazaré.
De acordo com tudo que relata nas Sagradas Escrituras, não há dúvidas, portanto, de que Maria e José uniram-se em um matrimônio totalmente legítimo. Antigamente, era um belo costume da liturgia totalmente. Antigamente, era um belo costume da liturgia da Igreja celebrar o casamento da Virgem Maria na data de 23 de janeiro. Depois de 1914, a celebração deixou de ser obrigatória devido à reforma do calendário litúrgico pelo Santo Papa Pio X, mas seguiu como uma festa particular de diversas igrejas locais até ser totalmente abolida, na reforma de 1969. Isso não nos impede de recordar o mistério comemorado nessa antiga festa, tampouco altera o fato bíblico, de que Maria, a Santíssima Virgem e Mãe de Deus, não era simplesmente comprometida com São José, mas casada com ele.
É claro que Maria prometeu a Deus ou chegou a fazer votos de virgindade perpétua - podemos aceitar que essa tenha sido um inspiração especial do Espírito Santo. Para o povo de Israel, na época, uma menina saudável atingir a maturidade sexual e permanecer solteira era impossível e impensável. Então, era certamente parte do plano divino que Maria fosse desposada, a despeito de sua promessa a Deus ou de seu voto de castidade. O carpinteiro José da casa e da linhagem de Davi, era o companheiro que a Divina Providência destinara e prepara para Maria, dotando-o da nobreza e integridade de caráter necessárias para que naquele matrimônio o esposo respeitasse a virgindade da esposa.
Assim como em qualquer casamento, o de Maria e José tinha como propósito a mais íntima união de duas pessoas entre si. Nesse caso, contudo, ambos concordaram em renunciar às relações sexuais.
No casamento, o uso legítimo e natural das capacidades sexuais recebidas de Deus, para deleite mútuo dos cônjuges e para a propagação da vida, é também parte do plano divino.
Contudo, esse uso se trata necessariamente de uma obrigação; pode-se efetivamente renunciar a ele quando se deseja fortalecer ainda mais a união espiritual do casal. De fato, deve-se renunciar a esse direito quando houver o comando divino para tal ou quando o Reino dos Céus estiver em jogo. A abstinência temporária ou permanente de relações sexuais no casamento, como foi o caso de Maria e José, demonstra que a satisfação de desejos carnais e sexuais não é absolutamente necessária para a verdadeira felicidade conjugal. O contentamento espiritual do casamento vivido dessa maneira pode torná-la mais belo e prazeroso como recompensa.
Chegamos, então, à qualidade singular que eleva o matrimônio de Maria e José acima de todos os outros, por mais íntimo e terno que seja o amor de ambos os cônjuges: tratava-se de um matrimônio virginal, ou seja, as duas partes desse casamento em total liberdade e de plena consciência, renunciaram para sempre ao exercício do direito às relações sexuais entre si.
A prova disso está bem clara nas Sagradas Escrituras: No Evangelho, na passagem da Anunciação (Lc. 1, 26-38), lê-se Maria declarando solenemente ao anjo Gabriel: "eu não conheço varão", Como resposta à mensagem mais importante e honrosa já enviada dos céus a um ser humano - a de que ela, Maria, se tornaria a mãe do Messias, o Filho de Deus - disse: "Como se fará isso, pois eu não conheço varão?" (Lc 1,34). Maria, sábia e humilde virgem, de maneira alguma quis com essas palavras esquivar-se da missão que Deus lhe atribuíra. No entanto, ela não compreendia como a declaração do anho, de que iria conceber e dar à luz uma criança, poderia ser cumprida! Ela pediu explicação ao mensageiro dos céus. "Como se fará isso, pois eu não conheço varão?". Não se aplicaria o ditado "Porque a boca fala do que o coração está cheio" (Mt 12,34) à resposta de Maria? Seu coração estava repleto do desejo e da determinação de permanecer completa e absolutamente consagrada a Deus em perpétua virgindade. Até então ela a preservara sem máculas tanto no sentido físico quando no espiritual; e estava determinada a continuar preservando esse tesouro precioso.
Além disso, estava convencida de que a decisão de prometer sua virgindade fora aprovada e abençoada por Deus; caso contrário a pergunta de Maria não faria nenhum sentido. Sua decisão de permanecer eternamente virgem era algo que ela já havia firmado, e nenhuma oferta, não importa quão honrosa ou de que origem fosse, poderia fazê-la mudar de ideia.
Diante de tal postura da parte de Maria, podemos razoavelmente concluir que ela consentiu o noivado com José apenas sob a condição de que sua virgindade fosse preservada durante o matrimônio.
Se José concordou com essa condição, podemos com isso tirar algumas conclusões acerca de suas perspectivas espirituais e valores morais. Se ele concordou com o noivado e o casamento com Maria diante de condições tão incomum, como mencionada anteriormente, então ele - que naquele momento não tinha a menor ideia do grande acontecimento salvífico que estava por vir, a encarnação do Filho de Deus no seio de sua noiva - deve ter considerado Maria uma pessoa de estremo valor, como de fato o era, com a coroa de sua virgindade intacta, e quis unir-se para sempre a ela, a despeito disso, ou exatamente por essa mesa razão. Mas se esse homem tinha a virgindade de Maria em tão alta conta, ele próprio era uma pessoa inteiramente justa, nobre e casta que, com o coração alegre, quis renunciar aos prazeres do sexo no casamento e às bênçãos dos filhos para ser capaz de proteger um bem ainda mais precioso; a pureza e a virgindade de sua esposa.
Nesse sentido, nossa atenção volta-se para o fato de que Maria e José entraram em seu pacto de noivado e matrimônio apenas ao prometerem um ao outro a virgindade perpétua, ou seja, após concordarem mutuamente em absterem-se para sempre das relações conjugais, já que, sem o consentimento de São José à virgindade de Maria, tão agradável que era a Deus, tal decisão da parte dela teria anulado o contrato de casamento logo no início.
É preciso ter em mente que o laço matrimonial entre Maria e José foi estabelecido por ambas as partes com total liberdade e consciência, como uma aliança virginal, a fim de que possamos apreciar adequadamente a grande referência que São José tinha por sua imaculada noiva - e isso, vale lembrar, antes que tivesse qualquer ideia de que Maria havia sido escolhida e chamada por Deus.
O fato de que São José comprometeu-se a estabelecer um acordo de matrimônio virginal com Maria merece ainda mais reflexão. Até então, o mundo não havia testemunhado um tal acontecimento, e sequer o considerava possível. A própria Antiga Aliança nunca havia visto um acordo como aquele. Mesmo na Nova Aliança, como veremos, as imitações desse acordo de matrimônio virginal são extremamente raras. É certo que de tempos em tempos, na história da Igreja, existiram generosamente indivíduos que, com os olhos voltados a Cristo e por amor ao Reino dos Céus, consagraram entusiasticamente sua virgindade a Deus com uma fidelidade imperturbável, especialmente no contexto sacerdotal e monástico. Porém, tais nobres almas, que mantiveram a promessa de observar a virgindade perpétua e fiel durante toda a vida, renunciaram inteiramente ao casamento e viveram como solteiras e celibatárias, em vez de casaram-se e renunciarem a seus direitos conjugais. Homens e mulheres que optaram deliberadamente por viver a vida celibatária, seguindo o exemplo de Maria e José, e que de fato viveram dessa maneira, são - como iremos observar - a exceção, mesmo entre beatos e santos. Aqui surge frequentemente a pergunta: não faria mais sentido, então, e não seria mais propício à perfeição, a Maria e a José, que renunciassem totalmente ao matrimônio ao invés de optar por um matrimônio celibatário? Jesus Cristo e seu Apóstolo Paulo não tinham em alta conta o estado celibatário e a vida de castidade? E não é essa, precisamente, a razão por que a Igreja exige que seus padres não se casem e vivam o celibato? E o Concílio de Trento não emitiu uma doutrina a respeito da superioridade do estado virginal sobre o matrimonial, nas seguintes palavras: "Se alguém disser que o estado de Matrimônio deve ser preferido ao estado de virgindade ou de celibato, e que não é melhor nem mais feliz manter-se em virgindade ou celibato que casar-se, seja anátema"?
Para que se compreenda corretamente o matrimônio de Maria e José, é preciso levar em conta as circunstâncias da época e os planos da Divina Providência.
Uma série de razões, listadas desde cedo por grandes Padres da Igreja, como Santo Ambrósio e Santo Agostinho, deve ter feito o contrato de casamento parecer aconselhável, e mesmo necessário, a Maria e José, apesar de sua decisão de manter a castidade perpétua:
1. Em primeiro lugar, naquela época, entre o povo israelita, a visão predominante era de um adulto, uma pessoa sexualmente madura, não podia renunciar ao casamento. É claro que não havia uma lei exigindo um matrimônio, mas essa atitude era vista como uma ofensa à tradição e ao decoro público.
Havia outra importante razão religiosa para isso: naquela época, entre os israelitas, todos os olhos estavam voltados à promessa do Messias que viria. Nos filhos ou netos, bisnetos e tataranetos, os fiéis israelitas acreditavam fortemente que poderiam ter sua participação na bênção messiânica. A bênção dos filhos era vista como o cumprimento da promessa de Deus a Abraão; por outro lado, a falta deles era considerada uma terrível desgraça, às vezes até mesmo um castigo divino. Por isso é compreensível que durante todo o Antigo Testamento não tenha sido nomeada nenhuma virgem sobre quem se poderia dizer com certeza que renunciara deliberada e voluntariamente ao matrimônio.
2. É preciso entender também que, segundo a visão israelita da época, o estado matrimonial era mais valorizado que o celibato. Hoje em dia, vemos situação semelhante em uma sociedade superficialmente cristã, em que quase não restaram vestígios da antiga valorização da virgindade. De qualquer maneira, era mais conveniente a Maria, por um série de motivos, esconder sua decisão de permanecer virgem sob o manto do casamento. O mesmo pode dizer de São José. Ele também era, em certa medida, impedido pelas circunstâncias a casar-se a despeito de sua decisão de manter o celibato. Quem determinou as circunstâncias da época dessa maneira, em última instância, foi Deus, em sua onisciente Providência. Em sua Suam Teológica, Santo Tomás de Aquino explica a sabedoria da Providência divina em fazer com que dois virgens, Maria e José, se unissem em matrimônio - num matrimônio virginal para ser exato:
a. Se o nascimento do Filho de Deus encarnado, aos olhos do mundo - que naquela época considerava totalmente impossível uma concepção e um nascimento virginais - não fosse protegido por um pai legítimo, o Salvador seria exposto à calúnia de ser considerado bastardo ou filho ilegítimo, e sua mãe, a qual era abençoada e virgem, seria considerada uma simples mãe solteira. Era necessário que Cristo e Sua Mãe pudessem aparecer em público honrosamente e sem reprovação. Isso só seria possível se Jesus, a despeito de sua concepção virginal, nascesse de uma união legítima.
b. Além disso, o Messias prometido deveria vir da linhagem do Rei Davi. Sem a união conjugal de José (descendente de Davi) com Maria, Jesus Cristo Jamais teria sido assumido legitimamente como "Filho de Davi", ainda que a própria Maria fizesse parte da mesma linhagem.
c. Por fim, é fácil perceber por que era muito mais vantajoso para Maria que o Divino Filho, virginalmente concebido, nascesse de um matrimônio, já que dessa forma ela - especialmente durante a infância e adolescência do Deus-Homem - teria José a seu lado para ajudá-la e protegê-la de quaisquer apuros e perigos.
Há diversas outras razões pelas quais convinha a Maria desposar José. Se alguma vez o ditado "Estava escrito nas estrelas" foi verdadeiro, certamente o foi no caso do laço sagrado entre Maria e José: desde a eternidade o Deus trino predestinou Maria para ser a Mãe do Redentor, e preparou também primorosamente tudo o que poderia servir a esse propósito.
Assim, se o grande mistério da Encarnação do Filho de Deus seria cumprido sob o véu do matrimônio, era necessário providenciar à futura Mãe de Deus um esposo digno. "Façamos um auxiliar que lhe corresponda" (cf. Gn 2,18) - talvez assim se tenha pronunciado o Deus trino, como o fizera na criação do primeiro homem. Na medida do possível, o noivo e esposo escolhido para a mais virtuosa noiva deveria ser de origem igualmente nobre, especialmente quando às disposições do coração. Quando consideramos tudo isso como parte do plano providencial divino, começamos a compreender que São José, ao dar a mão a Maria em um matrimônio casto, superou imensamente não apenas os seus contemporâneos, mas os homens de todas as épocas, na abundância de suas virtudes. Também podemos ver como essas duas almas virginais encontraram-se e compreenderam-se tão bem uma à outra que ofereceram mutualmente o inestimável tesouro da virgindade. Ao oferecer a Maria sua mão e seu coração em um matrimônio virginal, assim como ao confiar-lhe sua própria virgindade como um precioso dote de noivado, José deu a Virgem algo muito mais valioso que a daria o pobre descendente da linhagem real de Davi se trouxesse consigo um reino, em vez de um modesto lar e uma carpintaria. Da mesma maneira, quando Maria o escolheu para ser o eterno protetor, o legítimo mestre e detentor de sua imaculada pureza e virgindade, conferiu a São José um tesouro sem igual em toda a Terra.
HOLBÖCK, Ferdinand. Santos Casados: A santidade no matrimônio ao longo dos séculos. P. 3 RS: Minha Biblioteca Católica 2020.